Em um barracão afastado da cidade grande, com paredes brancas como o alá e com inúmeros filhos de santos que ocupam diversos cargos, vivem uma Cadeira e uma Esteira. O diálogo a seguir ocorreu entre as duas em um dia movimentado de função:

— Ai, ai — suspirou profundamente a Esteira.

— O que está acontecendo por aí? — disse a Cadeira.

— Nada. Nunca acontece nada por aqui.

“Ops, a Esteira está um pouco ranzinza hoje”, pensou a Cadeira, que lhe respondeu em seguida:

— Minha irmã, qual o motivo para tanta irritação?

— Cadeira, se você soubesse o quanto eu lhe invejo. Sempre tão alta, imponente, importante. Bem cuidada, com laços e limpa com pano úmido. A vida aqui embaixo é humilhante!

— Tome cuidado com o que você diz, Esteira. Existem pontos positivos e negativos em toda existência. Sua vida não é miserável, assim como a minha não é gloriosa. Pra ser bem sincera, eu queria mesmo era ser uma Esteira!

— Nem se faça de maluca, Cadeira, e nem tente falar coisas para aliviar esse meu sentimento. Você tem tudo do bom e do melhor e só os poderosos podem lhe usar. É egoísmo seu achar que minha vida é melhor do que a sua, quando você vê as coisas de um ângulo diferente e superior.

— Chega, Esteira! Cale-se e ouça uma vez na sua vida! Estou farta de suas reclamações. Agora se aquiete aí que eu vou lhe contar o que eu vejo. E sem interrupções, por favor.

A Esteira se assustou com o tom da Cadeira. Ela nunca havia sido rude ou aumentado sua voz. Perplexa, a Esteira ficou em silêncio e ouviu atentamente o que a Cadeira tinha a dizer.

— Você sempre reclama de barriga cheia, Esteira. Se soubesse o que eu sinto e o quanto eu lhe invejo, não falaria tantas bobagens. Escute com atenção e tenho certeza de que mudará o rumo desses seus pensamentos.

— Minha amiga, você acolhe a todos sem distinção, do abian à iyalorixá. Todos que têm um pouco mais de humildade te usam sem vergonha! Você está presente em todas as etapas do ciclo iniciático. Você acolhe o yawô por 21 dias, o esquenta e lhe faz companhia. Após isso, você sempre estará ao lado dele nas horas de descanso, nas refeições e nas confraternizações com os outros irmãos. Ele lhe tratará com cuidado e carinho porque sabe que você é única! Um pedaço dele que o acompanhou por tantos anos. E mesmo quando eu estiver aqui para servi-lo, ele sentirá falta do conforto que tinha ao seu lado.

— Só os mais frios e arrogantes trocam você por mim. Eu sou um objeto de status que todos almejam, mas poucos sabem usar com responsabilidade e discernimento. Sem você, eu não estaria aqui e nem existiria. Para alguém chegar até mim, precisa passar primeiro por você. E mesmo depois de concluírem o ciclo, eles ainda podem e vão voltar a você, porque o conforto que você oferece, cadeira nenhuma pode dar. Você é especial, Esteira! Você sabe de todos os mistérios, de todos os segredos e de todas as rezas. Não queira se trocar por mim, porque você é fundamental no culto e insubstituível.

Ao terminar de falar, a Cadeira percebeu que a Esteira não a havia interrompido uma única vez. Será que ela estava prestando atenção ou apenas ignorando?

— Esteira! Esteira! Você está me ouvindo?

— Cadeira, me desculpe por ser tão chata durante todo esse tempo. Você tem razão em cada palavra dita. Não existe uma pessoa que não tenha passado por mim. Por mais que me arrastem de um lado para o outro, isso significa que tenho serventia para aqueles que me usam. Moldo corpos e cabeças. Dou futuro aos novos iniciados e acolho os antigos, que em mim vêm repousar. Sou usada para fins sagrados e sou insubstituível. Obrigada por me mostrar esse lado, Cadeira. E agora até sinto um pouco de pena de você.

A Cadeira e a Esteira riram juntas da piada, e hoje conseguem entender a importância e o papel de cada uma dentro do culto!

Texto de Amanda D’Oya

Reflexão sobre o texto:

Este texto nos convida a refletir sobre o valor da humildade e o papel que cada um de nós desempenha na vida. A “Cadeira” e a “Esteira” representam, de forma simbólica, a comparação entre status e simplicidade. A Esteira, que se vê em uma posição inferior, descobre que, embora não seja valorizada socialmente como a Cadeira, seu papel é fundamental e insubstituível.

A lição central é que todos têm importância, independentemente da posição que ocupam. O status, muitas vezes atribuído às aparências ou privilégios, não define o verdadeiro valor de alguém. Ao contrário, a essência de cada função, quando vista com clareza e humildade, revela que todos são indispensáveis dentro de um ciclo maior.

Essa narrativa também nos alerta sobre a inveja e o julgamento precipitado. Ao invés de olhar para os outros com ressentimento, devemos entender nosso próprio valor e reconhecer que cada um tem uma contribuição única a oferecer. A humildade é o que nos permite enxergar e aceitar essa verdade, trazendo paz e reconhecimento para nossas próprias qualidades.