Nas diversas culturas, a concepção religiosa da morte está intrinsecamente ligada à compreensão da vida, formando um ciclo contínuo. Os Iorubas e outros grupos africanos que fundamentaram as religiões afro-brasileiras acreditam que a vida e a morte se alternam em ciclos, permitindo que os mortos retornem ao mundo dos vivos por meio da reencarnação em novos membros da própria família. Vários nomes iorubas expressam esse retorno, como Babatundê, que significa “O pai está de volta”.

Para os Iorubas, existem dois mundos: o mundo dos vivos, chamado de aiê, e o mundo sobrenatural, onde residem os orixás, outras divindades e espíritos, denominado orum. Quando alguém morre no aiê, seu espírito, ou uma parte dele, transita para o orum, podendo retornar ao aiê através do renascimento. Importante destacar que, na tradição ioruba, não existe a ideia de punição ou recompensa após a morte; portanto, as noções de céu, inferno e purgatório, comuns na tradição ocidental-cristã, não se aplicam. Não há julgamento após a morte, e os espíritos buscam retornar à vida no aiê, pois o ideal é viver.

Os espíritos dos mortos ilustres, como reis, heróis, grandes sacerdotes e fundadores de linhagens, são cultuados e se manifestam durante os festivais de egungum, onde sacerdotes mascarados transitam entre os humanos, desempenhando papéis de juízes, resolvendo contendas e pendências da comunidade.

O papel do ancestral Egungum

O ancestral Egungum desempenha um papel crucial no controle da moralidade do grupo e na manutenção do equilíbrio social, através da resolução de pendências e disputas pessoais. No entanto, essa prática não se reproduziu da mesma forma no Brasil. Embora o culto ao egungum tenha sido reconstituído na Bahia em alguns terreiros especializados, como o candomblé de egungum da Ilha de Itaparica (Braga, 1992), a prática está distante do cotidiano dos candomblés de orixás. Essa desconexão resultou na perda das funções sociais africanas originais, transformando a religião africana no Brasil em uma religião estritamente ritual, carente de uma ética coletiva.

O ideal ioruba do renascimento é tão acentuado que alguns espíritos renascem apenas para morrer novamente, com o intuito de renascer rapidamente. Esses são conhecidos como abikús (literalmente, “nascido para morrer”), um conceito que ajuda a explicar as altas taxas de mortalidade infantil na cultura ioruba. Em geral, um abikú renasce várias vezes do útero da mesma mãe. Quando uma criança é identificada como um abikú, rituais são realizados para evitar sua morte prematura.

Assim como a sociedade Egungum cultua os antepassados masculinos do grupo, a sociedade Gueledé celebra as mães ancestrais, responsáveis por zelar pela saúde e vida das crianças, incluindo os abikús. Os festivais Gueledé, no entanto, não sobreviveram no Brasil, principalmente devido a disputas entre lideranças do candomblé no início do século XX, que resultaram na cisão do grupo e na fundação do Axé Opô Afonjá por Mãe Aninha Obá Bií.

A evolução do conceito de Abikú no Candomblé

A ideia de abikú não sobreviveu integralmente no Brasil; o termo agora designa, em muitos candomblés, indivíduos considerados como tendo nascido já iniciados para o orixá ao qual pertencem. Isso significa que não devem passar pelo ritual de raspagem, como é comum para aqueles que estão iniciando na religião. A maneira fragmentária como a religião africana foi reconstituída no Brasil trouxe mudanças significativas nos conceitos de vida e morte, impactando o significado de diversas práticas rituais, especialmente sob a influência dos ritos católicos e das concepções ensinadas pela Igreja.

A concepção Iorubá do Corpo e da Alma

A tradição cristã ensina que o ser humano é composto de corpo material e espírito indivisível, ou alma. Por outro lado, a concepção iorubá reconhece também a existência do corpo material, que eles chamam de ara. Com a morte, o corpo se decompõe e é reintegrado à natureza, enquanto a parte espiritual é composta por várias unidades, cada uma com existência própria. As principais unidades da parte espiritual são:

  1. Emi: O sopro vital, que vem de Olorum, representado pela respiração.
  2. Ori: A personalidade-destino, que se refere à cabeça e à individualidade.
  3. Identidade Sobrenatural: A conexão da pessoa com a natureza e seu orixá pessoal.
  4. Egum: O espírito propriamente dito, representando a memória e identidade do indivíduo.

Cada uma dessas partes precisa ser integrada para formar a pessoa durante a vida, e cada uma possui um destino diferente após a morte.

Destinos das Partes Espirituais Após a Morte

  • Emi: Abandona o corpo material na hora da morte, retornando à massa coletiva que contém o princípio genérico da vida, representando a força vital cósmica do deus primordial Olodumare-Olorum. O emi nunca se perde e é constantemente reutilizado.
  • Ori: Contém a individualidade e o destino, desaparece com a morte, pois é único e pessoal. Ninguém pode herdar o destino de outro, mesmo em casos de reencarnação.
  • Identidade Sobrenatural: Retorna ao orixá geral após a morte, do qual é uma parte infinitesimal.
  • Egum: Representa a plena identidade e a conexão social com a comunidade. Após a morte, ele vai para o orum, podendo renascer na própria família biológica. Os vivos podem cultuar a memória de alguém ilustre através de um altar ou assentamento preparado para o egum, oferecendo sacrifícios votivos que integram a linhagem dos ancestrais da família ou da comunidade. Esses rituais representam as raízes do grupo e são fundamentais para a identidade coletiva.

Na cultura tradicional africana, dias após o nascimento de uma criança iorubá, realiza-se a cerimônia de dar o nome, chamada ekomojadê. Durante essa cerimônia, o babalaô consulta o oráculo para desvendar a origem da criança, permitindo descobrir se se trata de um ente querido renascido.

A Importância dos nomes e ritos de passagem no Candomblé

A Importância dos nomes e ritos de passagem no Candomblé

Os nomes iorubás sempre designam a origem mítica da pessoa, podendo referir-se ao seu orixá pessoal, geralmente o orixá da família, determinado paternalmente. O nome também pode refletir a condição do nascimento, como o tipo de gestação e parto, ou a posição na sequência dos irmãos, como no caso de quem nasce após gêmeos, ou mesmo a condição de abikús. A partir do momento em que a criança recebe o nome, inicia-se uma série de ritos de passagem que não apenas assinalam a entrada em papéis sociais, como a idade adulta e o casamento, mas também a construção da própria identidade espiritual.

Ritos de passagem e morte

Com a morte, esses ritos são realizados novamente, agora com a intenção de liberar as unidades espirituais, garantindo que cada uma delas chegue ao seu destino correto. Isso restabelece o equilíbrio que foi rompido com a morte. Nas comunidades de candomblé e outras denominações afro-brasileiras que seguem a tradição africana, a morte de um iniciado exige a realização de ritos funerários.

Os rituais funerários são conhecidos por diferentes nomes nas diversas nações:

  • Axexê na nação Keto
  • Tambor de choro nas nações Mina-Jeje e Mina-Nagô
  • Sirrum na nação Jeje-Mahim
  • Ntambi ou Mukundu na nação Angola

Os principais objetivos desses rituais são:

  1. Desfazer o assentamento do ori: O ori é fixado e cultuado na cerimônia do bori, que precede o culto ao orixá pessoal.
  2. Desfazer os vínculos com o orixá pessoal: Isso implica romper laços com toda a comunidade do terreiro, incluindo ascendentes (mãe e pai-de-santo), descendentes (filhos-de-santo) e parentes colaterais.
  3. Despachar o egum do morto: O egum deve deixar o aiê e ir para o orum. A complexidade dos ritos funerários aumenta com o tempo de iniciação do falecido, ou seja, quanto mais vínculos existirem no aiê, mais ritos serão necessários para cortá-los.

Mesmo o vínculo com o orixá, uma divindade que faz parte do orum, representa uma ligação com o aiê. O assentamento do orixá é material e existe no aiê, simbolizando sua existência no orum, o mundo paralelo. Mesmo um abiã (o postulante que inicia sua vida no terreiro e já realizou seu bori) precisa desfazer laços, embora sua cerimônia seja mais simples.

A sequência iniciática no Candomblé

A sequência iniciática que um membro do candomblé, xangô, batuque ou tambor de mina percorre (bori, feitura de orixá, obrigações de um, três e cinco anos, e obrigações subsequentes a cada sete anos) representa um aprofundamento e ampliação dos laços religiosos. Novas responsabilidades e prerrogativas se acumulam com a mãe ou pai-de-santo, a comunidade do terreiro, filhos-de-santo e o povo-de-santo em geral.

Com a morte, esses vínculos devem ser desfeitos, liberando o espírito, o egum, de suas obrigações com o mundo do aiê, incluindo a religião. O rito funerário, portanto, simboliza o desfazer de laços e compromissos, além da liberação das partes espirituais que constituem a pessoa. É comum que, simbolizando a ruptura que a cerimônia representa, os objetos sagrados do morto sejam desfeitos, quebrados e despachados.

O Ritual do Axexê no Candomblé

O termo axexê refere-se aos ritos funerários da nação Keto do candomblé e outras variantes de origem iorubá e fom-iorubá, como as conhecidas jeje-nagô. É provável que “axexê” seja uma corruptela da palavra iorubá àjèjé. Nas terras iorubás, era costume, durante o luto de um caçador, sacrificar um antílope ou outro animal de quatro patas. Parte do animal era consumida pelos parentes e amigos em uma festa em homenagem ao falecido, enquanto o restante era oferecido ao espírito do caçador na mata, junto com seus instrumentos de caça.

A Conexão com o Ebó

Esse ritual era denominado àjèjé. O axexê realizado no candomblé brasileiro pode ser visto como um grande ebó, onde se oferece carne sacrificial ao espírito do morto, juntamente com seus objetos rituais. Como o candomblé é uma religião de transe, diversas divindades participam ativamente do rito funerário, com destaque para os orixás associados à morte. Oiá ou Iansã é a orixá encarregada de guiar os mortos para o orum, sendo considerada a patrona do axexê.

O Mito de Oiá e Odulecê

Um mito que ilustra o axexê diz que um caçador chamado Odulecê, líder dos caçadores de Keto, adotou uma menina chamada Oiá. Após a morte de Odulecê, Oiá decidiu homenageá-lo. Reuniu seus instrumentos de caça e preparou as iguarias favoritas de Odulecê, dançando e cantando por sete dias. Na sétima noite, acompanhada pelos caçadores, Oiá depositou os pertences de Odulecê ao pé de uma árvore sagrada. O pássaro “agbé” então partiu em um voo sagrado. Olorum, emocionado com a homenagem, transformou Odulecê em orixá e Oiá na mãe dos espaços sagrados. Desde então, todos os espíritos que morrem são levados ao orum por Oiá, após serem homenageados por seus entes queridos em uma festa de comidas, cantos e danças, estabelecendo assim o ritual do axexê.

Participação dos Orixás no Axexê

Além de Oiá, outros orixás como Nanã, Euá, Omulu, Oxumarê, Ogum e, ocasionalmente, Obá, participam do axexê. No entanto, Xangô não é incluído, pois tem um temor declarado dos eguns, conforme narrativas de outros mitos.

A sequência do axexê começa imediatamente após a morte, quando os sacerdotes manuseiam o cadáver para remover a marca simbólica do orixá, implantada no crânio durante a feitura. O cabelo nessa área é retirado, e o crânio é lavado com amassi (preparado de folhas) e água. Esta lavagem simbolicamente inverte o primeiro rito iniciático, no qual as contas e a cabeça do novo devoto são lavadas pela mãe-de-santo. O líquido da lavagem é o primeiro elemento a fazer parte do grande despacho do morto.

Após o enterro, inicia-se a organização do axexê propriamente dito, que varia entre terreiro e nação.